Este pretende ser um espaço de divulgação de coisas que venho produzindo ao longo dos anos. Sem pressa. Afinal, "de preguiça em preguiça, também se enche boa linguiça".


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Um cão sobre o ocaso do poema

sou sim aquele cão sarnento que abre sobre a calçada seu circo de pulgas horrendo
horrendo? seu circo baudellaire,
antônio fraga ao desabrigo

aquele ser de lona já desgastada aqui e ali exibe as marcas dos
acidentes de uma existência
travada entre o trampolim e a cartola de onde brotam corvos
em lugar dos pompos demitidos de suas ilusões

esse cão que escava calçada insólita como se não pudesse,
que enterra o morto como quem cavasse a própria sepultura,
levanta o mastro glorioso - feito de vértebras mais musculosas que o próprio corpo -
e ergue-se sobre tudo o pano espandongado e áspero

sacode a carcaça num gesto frenético mas bem calculado
(tudo nele é ilusionismo)
para expor ao digníssimo público
seus artistas da fome: que saltem!

saltem minhas caras tomem pra si esse picadeiro vivo de passantes desatentos !

mas se não houver um aplauso
um olhar admirado
a vida não valeu a pena? Foda-se!
a vida é uma outra coisa além do espetáculo - tudo ali é ilusionismo lembram?

os cães mambembes são assim
debaixo da velha lona corroída
não se ouvem as estrelas de bilac
não há regozijo diante do inatingível
nas brechas abertas na velha cobertura, a carne vermelha
das patologias humanas
a burocracia invisível e perversa dos vermes

as pulgas ? Elas se apresentam sob apupos das ruas e o fascismo dos sapatos

tão diferentes dos burgueses carrapatos
elas não querem sugá-lo até a alma, até a própria morte
vivem no seu sem-tempo aos saltos quânticos: saltem! saltem!

diz-se: "a vida não é mais que um instante dentro do nada",
mas como pulsa!

sou como aquele cão de circo sobre um picadeiro de pulgas
mas apesar de tudo ou do nada respiro

a contragosto, respiro
respiro e tenho sede,
respiro e tenho fome
respiro e tenho raiva

pelo corpo, na lâmina dos dentes

tenho muita raiva entredentes!

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

cinquentanos

reencontrar um amigo é abrir  a casa para as borboletas

a sensação de seu sopro colorido e fresco dinamizando os átomos da penumbra
redimensionando paredes, rebocando ausências,
(mesmo as menos visíveis)

reencontrar um amigo é
descortinar janelas antes
insensíveis às paisagens do dia
às pertinências da noite;

desempenar portas resmungonas;
redesenhar corredores e passagens para o outro

reencontrar um amigo
é reformar a casa para o retorno de si mesmo de uma longa ausência