Este pretende ser um espaço de divulgação de coisas que venho produzindo ao longo dos anos. Sem pressa. Afinal, "de preguiça em preguiça, também se enche boa linguiça".


sexta-feira, 2 de junho de 2023

CHORAR

CHORAR

Tenho saudades, saudades de ti, companheira nua, 

saudades da infância, 

daquela viagem a Itaocara de onde o coração nunca mais voltou, 

saudades de um café diante da manhã modorrenta e friap, erdida no tempo

do café plantado e colhido pelas mãos ásperas da minha avó, pelas mãos fortes e ternas da minha mãe 

lembra daquelas viagens ao cinturão de Órion no tempo em que a gravidade detinha leis que ainda nos permitiam alguma ilusão? 

chorar é catarse às avessas porque me recarrega de mim mesmo

choro por ser um homem velho diante

de um mundo incoerentemente jovem

porque sou um homem frágil entre fantasmas gigantescos 

choro quando ao som de debussy

encontro guinga também chorando por caminhos lindamente tortuosos

choro por humano que sou

e chorar é uma forma de redenção humana:

chorar pela filha que casa

pela neta que nasce

pela saudade amargada na distância

chorar, com atraso de anos, aquele tio desaparecido,

chorar pelo amor acabado, 

pelo amor que cruza comigo numa esquina dessa idade e ligeira 

o choro do primeiro dia de escola suavizado pela imagem da professora mais linda de todas porque era só sua

o choro da primeira menarca da filha quando o jardim cresce à volta e tudo vai virando floresta repleta de luz e lobos

chorar diante da humilhação diária, nossa humilhação diária 

sob a pele negra, sob a pele femininas, sob a pele operária 

chorar porque faz sentir em mim a sua dor, porque te tomo como minha, companheira nua 

enfim chorar porque o choro

tem a potência de me fazer de ti

em mim mesmo