CHORAR
Tenho saudades, saudades de ti, companheira nua,
saudades da infância,
daquela viagem a Itaocara de onde o coração nunca mais voltou,
saudades de um café diante da manhã modorrenta e friap, erdida no tempo
do café plantado e colhido pelas mãos ásperas da minha avó, pelas mãos fortes e ternas da minha mãe
lembra daquelas viagens ao cinturão de Órion no tempo em que a gravidade detinha leis que ainda nos permitiam alguma ilusão?
chorar é catarse às avessas porque me recarrega de mim mesmo
choro por ser um homem velho diante
de um mundo incoerentemente jovem
porque sou um homem frágil entre fantasmas gigantescos
choro quando ao som de debussy
encontro guinga também chorando por caminhos lindamente tortuosos
choro por humano que sou
e chorar é uma forma de redenção humana:
chorar pela filha que casa
pela neta que nasce
pela saudade amargada na distância
chorar, com atraso de anos, aquele tio desaparecido,
chorar pelo amor acabado,
pelo amor que cruza comigo numa esquina dessa idade e ligeira
o choro do primeiro dia de escola suavizado pela imagem da professora mais linda de todas porque era só sua
o choro da primeira menarca da filha quando o jardim cresce à volta e tudo vai virando floresta repleta de luz e lobos
chorar diante da humilhação diária, nossa humilhação diária
sob a pele negra, sob a pele femininas, sob a pele operária
chorar porque faz sentir em mim a sua dor, porque te tomo como minha, companheira nua
enfim chorar porque o choro
tem a potência de me fazer de ti
em mim mesmo
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