CHORAR
tenho saudades, saudades de ti,
saudades da infância,
daquela viagem a itaocara de onde o coração nunca mais voltou
lembra daquelas viagens ao cinturão de Órion no tempo em que a gravidade
tinha leis que ainda nos permitiam alguma ilusão?
chorar é catarse às avessas:
chorar me recarrega de mim mesmo
choro porque ser um homem velho
indiferente a um mundo insistentemente jovem
porque sou um homem frágil entre fantasmas gigantescos
choro quando ao som de debussy
encontro guinga também chorando por caminhos lindamente tortuosos
choro por humano que sou
por ser uma forma de redenção humana
chorar pela filha que casa
pela neta que nasce
pela saudade amargada na distância
chorar, com atraso de anos,
aquele tio desaparecido,
pelo amor acabado,
pelo amor
o choro do primeiro dia de escola
suavizado pela imagem da professora mais linda de todas porque era só sua
o choro da primeira menarca quando o jardim cresce à volta e tudo vira floresta
semeada entre sombra, luzes e lobos
chorar diante da humilhação diária,
nossa humilhação diária de cada minuto
sob a pele negra, sob a pele de mulher
sob a pele operária
chorar faz sentir em mim a sua dor
enfim chorar porque o choro
tem a potência
de me transformar no outro
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