Este pretende ser um espaço de divulgação de coisas que venho produzindo ao longo dos anos. Sem pressa. Afinal, "de preguiça em preguiça, também se enche boa linguiça".


terça-feira, 11 de maio de 2021

Cidade adentro lll

 III 

* Saio vestido com meu casaco invisível de camaleão (Cidade a dentro)

* Por ali passava o trem. Sua ausência hoje me atropela em mil pedaços 

sigo atrás do sol, inelutável condição humana

(passos lentos;  velocidades já não me apaixonam)

as  pernas das  moças têm  urgências,

não as minhas

elas caminham como se o tempo fosse traí-las na próxima esquina

eu, que já extingui os relógios,

caminho!

consulto meu corpo passo a passo (joelhos, ilusões, crenças, pulso), e ele responde pouco, 

mas como  nunca, sorri!

pobre velho corpo quase esquizofrênico:

(a pele vai murchando como um casaco de loja barata vendo o modelo e o brilho se esgarçarem ao mesmo tempo),

inexplicavelmente, sorri 

o esqueleto já pouco confiável vai declinando de suportar  o peso do mundo

é um fardo, mas sinto já ter vindo longe demais pra abandoná-lo

os músculos, esses derreteram exaustos de tanto malhar em ferro frio, em fogo frágil

porém, mesmo sem um mote, meu corpo sorri diante da capacidade mecânica de ainda emular nitidamente movimentos quase esquecidos

Sádico ou apenas amadureceu antes de mim? Saberá ele, na sua forma primitiva, de segredos absolutos?

Sem resposta, caminho

É primavera e percebo que só os olhos não envelheceram parece 

faróis rebeldes, vão ficando menos míopes a cada detalhe invisível 

imagem por imagem, gesto por gesto , diante de cada paisagem passada,  intenção, delito ou glória já pouco se chocam

os olhos vão aprendendo : tudo é sabidamente transitório mesmo que sabidamente circulares

Esses meus olhos estranhos se tornaram mais íntimos ao longo dos anos

hoje conversam entre si, se apertam discordam e se confortam para além do óbvio ou da catarata,

(agora mal preciso abri-los para intuir o caos no mundo)

caminho e penso:

envelhecer talvez seja ir transferindo a musculatura para a alma






Um comentário:

Felipe disse...

Muito bom, camarada!