III
* Saio vestido com meu casaco invisível de camaleão (Cidade a dentro)
* Por ali passava o trem. Sua ausência hoje me atropela em mil pedaços
sigo atrás do sol, inelutável condição humana
(passos lentos; velocidades já não me apaixonam)
as pernas das moças têm urgências,
não as minhas
elas caminham como se o tempo fosse traí-las na próxima esquina
eu, que já extingui os relógios,
caminho!
consulto meu corpo passo a passo (joelhos, ilusões, crenças, pulso), e ele responde pouco,
mas como nunca, sorri!
pobre velho corpo quase esquizofrênico:
(a pele vai murchando como um casaco de loja barata vendo o modelo e o brilho se esgarçarem ao mesmo tempo),
inexplicavelmente, sorri
o esqueleto já pouco confiável vai declinando de suportar o peso do mundo
é um fardo, mas sinto já ter vindo longe demais pra abandoná-lo
os músculos, esses derreteram exaustos de tanto malhar em ferro frio, em fogo frágil
porém, mesmo sem um mote, meu corpo sorri diante da capacidade mecânica de ainda emular nitidamente movimentos quase esquecidos
Sádico ou apenas amadureceu antes de mim? Saberá ele, na sua forma primitiva, de segredos absolutos?
Sem resposta, caminho
É primavera e percebo que só os olhos não envelheceram parece
faróis rebeldes, vão ficando menos míopes a cada detalhe invisível
imagem por imagem, gesto por gesto , diante de cada paisagem passada, intenção, delito ou glória já pouco se chocam
os olhos vão aprendendo : tudo é sabidamente transitório mesmo que sabidamente circulares
Esses meus olhos estranhos se tornaram mais íntimos ao longo dos anos
hoje conversam entre si, se apertam discordam e se confortam para além do óbvio ou da catarata,
(agora mal preciso abri-los para intuir o caos no mundo)
caminho e penso:
envelhecer talvez seja ir transferindo a musculatura para a alma
Um comentário:
Muito bom, camarada!
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