Este pretende ser um espaço de divulgação de coisas que venho produzindo ao longo dos anos. Sem pressa. Afinal, "de preguiça em preguiça, também se enche boa linguiça".


domingo, 24 de dezembro de 2023

Natal-23

NATAL 23

Não há chaminés no lixão da Gramacho
Não haverá neve na favela Beira Mar
Trenós não transitarão pelas vielas 
do Martins 

Já não há mais janelas onde deixar os poucos sapatinhos órfãos em Gaza

E amanhã será como ontem: com shoppings expondo suas luzinhas coloridas,
vorazes
de fachada

Marco Ribeiro 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

sentado ao lado de Tolstói sem Quintana

"O velho Leon Tolstói fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!"
(Mário Quintana)

I

ali se sentou um dia carregando a casa nas costas, por mais que se tentasse,
fugir é improvável,
a mulher os filhos o reboco esburacado,  uma parede não erguida
 rachaduras 
tudo lhe pesava 

sentou apenas ao lado das lembranças
daquele velho banco
caramujo em silêncio de planta
em solidão de jardim extinto
sentou naquele banco daquela última estação de trens fantasmas 

sentou-se e não havia poesia
nem romance, nem Tolstói nem Quintana
viriam socorrê-lo

agora apenas a brutalidade de um sol breve,
de uma brisa maternalmente distante

uma última lembrança sobreveio: a concha pesou demais: deixou-se ficar até ver detrás da janela o último trem finalmente partir da velha estação 
onde peanecera sentado sem nenhum espanto

II

Tolstói não imaginava que um dia Quintana faria um poema sobre a capacidade de se morrer tão pateticamente

Já Quintana deve ter pensado: que há de mais patético que ser poeta?

mãos à obra:
o que tinha sido mero banco, uma estaçãozinha de nome esquisito, 
a ficção de uma vida inteira
envelheceram cem anos
da sua morte como matéria bruta
à transformação em álcool, 
da inércia etílica, à embriaguez 
e finalmente à náusea seguinte
(ou mesmo até o segundo engov)


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

dolores

me doem os joelhos quase tanto quanto o gesto suspenso na memória de ....
o corpo antigo reconhece a dor como uma convivência inevitável: ....
só não admite ...

sexta-feira, 2 de junho de 2023

CHORAR

CHORAR

Tenho saudades, saudades de ti, companheira nua, 

saudades da infância, 

daquela viagem a Itaocara de onde o coração nunca mais voltou, 

saudades de um café diante da manhã modorrenta e friap, erdida no tempo

do café plantado e colhido pelas mãos ásperas da minha avó, pelas mãos fortes e ternas da minha mãe 

lembra daquelas viagens ao cinturão de Órion no tempo em que a gravidade detinha leis que ainda nos permitiam alguma ilusão? 

chorar é catarse às avessas porque me recarrega de mim mesmo

choro por ser um homem velho diante

de um mundo incoerentemente jovem

porque sou um homem frágil entre fantasmas gigantescos 

choro quando ao som de debussy

encontro guinga também chorando por caminhos lindamente tortuosos

choro por humano que sou

e chorar é uma forma de redenção humana:

chorar pela filha que casa

pela neta que nasce

pela saudade amargada na distância

chorar, com atraso de anos, aquele tio desaparecido,

chorar pelo amor acabado, 

pelo amor que cruza comigo numa esquina dessa idade e ligeira 

o choro do primeiro dia de escola suavizado pela imagem da professora mais linda de todas porque era só sua

o choro da primeira menarca da filha quando o jardim cresce à volta e tudo vai virando floresta repleta de luz e lobos

chorar diante da humilhação diária, nossa humilhação diária 

sob a pele negra, sob a pele femininas, sob a pele operária 

chorar porque faz sentir em mim a sua dor, porque te tomo como minha, companheira nua 

enfim chorar porque o choro

tem a potência de me fazer de ti

em mim mesmo






sábado, 27 de maio de 2023

Soyinka

Soyinka me revela o segredo da sabedoria:
jamais aprenda a envelhecer - que as batalhas sejam seu antídoto

Ser um homem antigo tateando entre memórias modernas 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

inutil

Inutil tentar recolher os pedaços do que fui um dia feito
mais que impossível, o inútil delimita a  essência do ato. Sim, inútil.

Hoje sou fragmento de outras pequenas coisas,
Se sem nenhuma grandiosidade nem completude
sou apenas fragmentos 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

a reyes

conheço bem efraim reyes já ouvi de seus segredos
mais espinhosos , de seu gozo mais indulgente
conheço reyes porque aprendi o segredo milimétrico dos espelhos:
o reflexo pode ser exatamente aquilo que não se vislumbra

sua alma como a minha é feita de corcéis negros
com elas cavalgamos lado a lado
pelas veredas abertas entre o mar e as cordilheiras
sobre eles cruzamos altiplanos e pradarias até os misteriosos manguezais
onde moram sob a lama as sementes
das palavras
junto com os caranguejos
e os cadáveres  de nossa juventude

reyes também me conhece
lado a lado cortejamos o sexo buliçoso das prostitutas
à beira do cais de angra
dormimos sob o mesmo teto dos andarilhos e indulgentes das ruas de  santiago

cerramos fileiras com aqueles que cantam com sotaque da américa latina

por isso digo: conheço bem efraim reys e ele a mim, sem nunca termos trocado sequer um casual bom dia

quinta-feira, 18 de maio de 2023

recuerdos del mañana

recuerdos del mañana

si recuerdo correctamente
la vida debería ser así:

construir cosas, casas, aunque sean invisibles
(Quizás lá más humana de Las virtudes)

respirar El aire junto a otros seres vivos
compartir el agua más clara,
del vino mas feliz
y no temer a ningún dios
estaba hecho de palabras, estaba hecho del arcilla

si recuerdo correctamente
la vida no debe ser sobre el miedo y el odio loco

solo de nosotros en nuestra prodigiosa  imperfección

recordações do amanhã

recordações do amanhã 

se bem me recordo 
a vida deveria ser assim:

construir coisas mesmo que invisíveis
(talvez as mais humanas de todas)
respirar o ar ao lado de outros seres vivos 
compartilhar da água mais clara,
do vinho mais alegre
e não temer nenhum deus
fosse feito de palavra, cajado ou barro

se bem me lembro
a vida não deveria ser feita de medo e ódio insano

apenas de nós em diálogo profundo      com nossa própria imperfeição:
nossa prodigiosa imperfeição humana 

segunda-feira, 8 de maio de 2023

outra infância

outra infância

minha mãe passou a acordar as galinhas, 

calçava os pés de nuvens para não acordar as crianças pretinhas antes que a realidade as despertasse para a escuridão dos dias 

fazia o café vindo de longe, com certeza plantado por mãos fortes e madrugadeiras como as suas,

(minha mãe, tão negra e tão mulher, que depois voltaria pra casa distante e sem reboco pra cuidar dos filhos, do cachorro

e das galinhas que, a essa altura, já dormiam)

e lá ia ela madrugada a dentro matar seus muitos leões diários:

naquele tempo não havia os dragões imaginários de hoje,

somente minha mãe, os leões e umas poucas, magras galinhas 

e toda uma pobre infância.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Os dias fora do relógio

1.

Meu coração pequeno não cabe nesse apartamento cofre
Mal cabe no gesto inócuo de buscar uma janela aberta para uma molécula de oxigênio 
Meu coração que anseia distâncias, palmilha paisagens, 
Ele que auscuta os fantasmas escondidos no armário da infância,
(de uma vita toda);

Que trava com eles batalha homérica sobre o natural da existência dos dias 

(meu coração recheado de esperanças,
becos sombrios,
inquietudes)

mesmo essas criaturas sabem que meu coração não cabe nem lá fora
Nem no pouco tempo sob a carne

Definitivamente não cabe nesse momento da vida entre janelas e dispositivos desumanos

Meu coração pandêmico que urge transbordar de mim , cartarata amedrontada,
coração que não cabe nem mesmo em si.

2.

Vestido apenas dos meus escarnecedores pentelhos,
me pergunto do outro lado do espelho:
aonde andas? Há quanto! Quanto silêncio de água empoçada em torno desse espectro avesso.

Por aí de adavas?
Há tempo não te vejo no meu reflexo.



sábado, 22 de abril de 2023

in universos&diversos

I
mais um dia de sensações chuviscado: o verão chegou gripado

II
os pés não querem ir, a porta aberta insiste
a paisagem chama, a rua obriga

III


sexta-feira, 7 de abril de 2023

sexta-feira, 31 de março de 2023

Teatro

Conceição

personagens:

conceição - empregada negra

augusto  -  patrão

leda - mulher de augusto

nete - filha libidinosa e supostamente portadora de retardo mental

patrícia - filha consumista

lu - filha do primeiro casamento de leda

cesinha - filho caçula 



abrem-se as cortinas augusto encontra-se recostado numa escrivaninha de sala de aulas de frente para o proscêncio. postura alusiva ao pensador de rodin. permanece assim dois ou três segundos.


AUGUSTO: SENDO ASSIM, DIRIA SÉRGIO BUARQUE (ASPAS) [FAZ O SINAL NO AR] “O BRASILEIRO É UM HOMEM CORDIAL” E ISSO TALVEZ EXPLIQUE HISTÓRICA E CULTURALMENTE BOA PARTE DE NOSSAS MAZELAS DIÁRIAS, POLÍTICAS ...O FAMOSO “JEITINHO BRASILEIRO [REPETE O GESTO ANTERIOR ENQUANTO PRONUNCIA]. TALVEZ AÍ TALVEZ MACHADO E LIMA SE APROXIMEM. UM O MULATO TENTANDO SOBREVIVER NUM MUNDO BRANCO. O OUTRO, ENTRANDO EM CONFLITO COM ELE. MAS ISSO JÁ É ASSUNTO PARA A PRÓXIMA AULA. OBRIGADO E BOM FINAL-DE-SEMANA.  
AJUNTA SEUS PERTENCES SOBRE A MESA, APAGA O QUADRO ENQUANTO “SE DESPEDE” DOS ALUNOS QUE VÃO DEIXANDO A SALA. FINALMENTE SE VÊ SOZINHO. SENTA-SE NA CADEIRA, DEIXA TRANSPARECER UM MISTO DE CANSAÇO  DESAPONTAMENTO.
AUGUSTO: [PARA A PLATEIA] QUE NEM MACHADO NEM LIMA TENHAM ME OUVIDO. SE OUVIRAM, A ESSA ALTURA ESTÃO SAINDO NO BRAÇO LÁ EMCIMA. [GARGALHA]
AO SE LEVANTAR ENTRA O DIRETOR.
DIRETOR: [JÁ DA PORTA, SOLÍCITO] AUGUSTO, MEU QUERIDO! PRECISO DA SUA AJUDA, MEU CARO MESTRE. SOUBE DO EPISÓDIO DO TELES, NÃO SOUBE?
AUGUSTO: CLARO, SÓRDIDO.
DIRETOR: POIS É, EU TAMBÉM ACHEI, POR ISSO PRECISAMOS DE TOMAR UMA ATITUDE URGENTE E EXEMPLAR. DIRETOR: TOTAL E COMPLETO.
AUGUSTO: MAS O SENHOR NÃO ACHOU O CASO ABSURDO!? 
 A MOÇA JÁ ENTROU NA JUSTIÇA. SÓRDIDO.
AUGUSTO: JUBILAMENTO!
DIRETOR: ISSO, SABIA QUE VOCÊ ENTENDERIA NOSSA POSTURA. NOSSA INSTITUIÇÃO NÃO PODE RESPONDER POR UMA IRRESPONSABILIDADE DESSAS. TEMOS UM NOME A ZELAR, CONTAS A PAGAR...
AUGUSTO: ENTÃO ESSA ENCRENQUEIRA FINALMENTE VAI EMBORA.
DIRETOR: [CÍNICO] ESSE!
AUGUSTO: [FITA O DIRETOR RETICENTE/ INTERROGATIVO]
DIRETOR: POIS É, MEU CARO, NÓS DO CONSELHO GESTOR DEBATEMOS BASTANTE O CASO... E... ORA, AUGUSTO POR FAVOR, NÃO NOS CONDENE! A OPINIÃO PÚBLICA TEM CAÍDO DE PAU EM NÓS. AS REDES SOCIAIS! NEM ME FALE!
AUGUSTO: O TELES?
DIRETOR: EU SEI QUE VOCÊS SÃO AMIGOS, COMPANHEIROS DE PARTIDO. EU SEI, COMUNISTAS SÃO SENTIMENTAIS.
AUGUSTO: [RI TENSO, QUASE INDIGNADO]  O SENHOR JÁ FOI UM “SENTIMENTAL” [MAIS UMA VEZ O GESTO].
DIRETOR: VEJA BEM . MEU CARO, O MUNDO HOJE É OUTRO. NÃO HÁ MAIS ESPAÇOS PRA SONHADORES. OLHE PROS LADOS, VEJA A EFERVESCÊNCIA  MUDIAL. O MUNDO HOJE CLAMA POR OUTRAS DEMANDAS, AUGUSTO. NÃO HÁ MAIS LUGAR PRAS IDEOLOGIAS.
AUGUSTO: HÁ LUGAR PRA QUÊ? CELULARES, IPODS, SHOPPING. SÓ ISSO? PASSEIOS EM MIAMI, NO SEU CASO, COMPRAS NO EXTERIOR. É ISSO?
DIRETOR: SEMPRE RADICAL. O SEMPRE RADICAL AUGUSTO. E VOCÊ, COMPANHEIRO, CAMARADA? SUA VIDA HOJE SE RESUME A UM BOM APARTAMENTO NA ZONA SUL, DEIXADO PELOS SOGROS…(INTERROMPE DE REPENTE.  MUDA DE TOM). AUGUSTO, SOMOS AMIGOS DE LONGA DATA. NÃO VAMOS DISCUTIR POR UM ASSUNTO QUE JÁ FOI RESOLVIDO. SE TRE FAZ SE SENTIR MELHOR, NÃO FUI EU, FOI O CONSELHO. O CON-SE-LHO DECIDIU PELO AFASTAMENTO DO……
AUGUSTO(SÚPLICO): SÓ TE PESSO: QUE SEJA UMA APOSENTADORIA. QUE SE DÊ A APOSENTADORIA, COM TODAS AS HONRAS, SE POSSÍVEL…
DIRETOR (INTERROMPENDO): HONRARIAS, EU ACHO DEMAIS. TALVEZ EU CONSIGA UMA PEQUENA HOMENAGEM. VOCÊ SABE, OS TEMPOS ANDAM BICUDOS. ALÉM DISSO TEM LÁ A MENINA PERIGUETE.
….................................
CENA ?
AUGUSTO: ENTÃO, CONCEIÇÃO, ESSA CASA NÃO É BOA?
CONCEIÇÃO: [DÁ UMA OLHADA À VOLTA. SORRI TÍMIDA]
AUGUSTO: ESSA CASA NÃO É BOA, CONCEIÇÃO? VOCÊ NUNCA RESPONDE.
CONCEIÇÃO: E O SENHOR SEMPRE PERGUNTA.
AUGUSTO: VOCÊ ESTÁ AQUI HÁ QUANTO TEMPO? 
CONCEIÇÃO: O SENHOR SABE. SABE NÃO?
AUGUSTO: TRINTA, QUARENTA ANOS?
LEDA: JÁ FALEI. AUGUSTO. PARECE QUE CONCEIÇÃO JÁ ESTAVA NESSA CASA ANTES DE SER CONSTRUÍDA. (RI) . ELA CUIDOU DO UMBIGO DA MINHA MÃE. EU CONTEI ESSA HISTÓRIA.
AUGUSTO: E SUA FAMÍLIA? ESTÁ TODA NO INTERIOR AINDA? UNS TÃO POR AÍ. A MAIORIA MORREU,




Jornaleiro

Largo a paisagem de microluzes paisagens coloridas por micro-sóis de gelo
Vou até a janela antiga de onde não vejo mais o jornaleiro do outro lado da rua

Não sei há quanto tempo ele já não está mais ali
(Há quanto tempo essa janela anda cerrada)
pra aonde teria levado sua sombra silenciosa? 

Talvez tenha saído à procura dalguma ausência mais antiga
(seria o sapateiro Luiz comunista ironicamente manco da esquerda?)

ou mais longe ainda: atrás do condutor de bondes que nem mesmo eu conheci, mas que me provoca saudade quase melancólica?

Quem sabe apenas se dissolveu na ambiguidade desses tempos
(ser de papel e tipografia frágil que é)
Tempos de notícias 
sem alma, de matérias sem músculo 
de personagens ruminados na vertigem dos acasos cotidianos

Talvez simplesmente tenha seguido ao encontro do destino igual dos jornaleiros de hoje
 e das notícias sempre: 
o aterro sanatório definitivo
e irrevogável da história



Poemas de 2011 a 2021



infância


minha mãe cantando pro radio 

eu sentado no fresco do  vermelhão na cozinha sonhava coisas do  mundo traçando mapas imaginários no chão


meu pai ia longe correr campinas de concreto

abater gigantes de metal e vidro

sem pajem ou musa


todos os dias  que rádio dizia bom dia, boa tarde

boa noite


de dentro, mãe cantava feito a dalva

uma homilia pra  emilinha:

sê forte, sê mulher pra suportar esse mundo de barba e músculo bruto


enquanto eu adormecia deitado numa nuvem branca lavada a mão

corada na luz solar de minha mãe


Pós-haicais

I

passo a passo o pássaro

passa de nuvens despido

aquele ex- pássaro abatido


II

romanos em si declinavam

portugueses quase concordam ainda

bardo mouro eu mordo a língua



Dos suicídios

I

vezes fico assim: só comigo, eu mesmo só em mim

vezes me recolho enfim: embrião, sertão, amendoim 


Mas súbito o inviável não sugere um possível sim

entre um e outro viro ventre:

embrião, amendoim


II


desafio diário: a palavra, meu caro, está 

sempre por um fio pouco claro

esse frágil frio cínico fio na sua natureza oblíqua:

ora crítica :bisturi; ora perdulária: navalha


VII


ai esse peito que rasga

essa pele que solta

lágrima lava queima

coração desiste e salta


e tudo é tão intensamente insustentável

que não se sustenta

e eu como era 

desmancho 


e no terceiro dia rebroto:


ai esse peito queima

esse coração que salta em si

essa pele  que deseja


aí essa lágrima que ri!


VIII


saio de mim pra me internar nalgum cômodo:

a casa enorme   não dorme, não ruge nem range

mas  insiste sádica em  convencer  as janelas que depois delas  não haverá  qualquer paisagem


IX


vezes fico assim:

só comigo

 eu mesmo só em mim


vezes me recolho enfim

embrião

sertão


mas súbito o inviável não vem sugerir  o possível sim,

entre um e outro

viro ventre:

embrião, amendoim


X


- que que há basquiat?

- é essa droga diária que deforma espanto e abraço,

que arranca milhões de olhos da luz e

condena as cores ao mais pálido embaraço

- então que que dá basquiat?

- redesenhar o espírito mais remoto do traço

compartilhar nessa tela

o esqueleto vigoroso

e  perplexo do escárnio


XI.


naquela madrugada 

depois daquele bar

solitário mesmo de mim

me sentia tão perto de um inseto 

que até pensei pular fora

do meu exoesqueleto 


 - depois daquele bar, depois do ébrio gesto  de amar -


mas naquele tempo isso andava tão demodê

que preferi  então 

entrar

sentar

escrever 


mas como pode a palavra mesma suicidar um suicida? 


palavra não pede nem convida

seduz enreda  condena, sufocando até a vida, 


feito imponderável  anti-inseticida





Universos&Diversos


I

a tarde ia se banhando de um profudinfitamente breve magenta

por mim ali mesmo parava pra todo o sempre  minha agenda.


II

O amor líquido de dois batráquios residiria  no ínfimo paço  entre sobressalto e tédio, beijo e brejo?


III

vezes me sinto tão só e  a solidão é tamanha 

que nem  essa mesma solidão me acompanha


VI

direito ao contraditório: ohlepse orem azerutan rop ajes euq oliuqa odut oiròtpmereq              ogen


pãoetcia


I

onde há fome de pão não haverá poesia

onde há fome de pão jamais brotará poesia

onde há sede do pão

não haverá fome de poesia?

não, meu caro, minha cara

onde não houver pão

poesia se criará lâmina, bala

revolta e fúria

essência mesma de toda sua arte



O livro dos acontecimentos


bilhete a vânia (bambirra)

sei que um dia (e sim virá esse dia em que não se precise disputar papel com a ventania)

poderemos passear por essa orla sob os trópicos sem a sensação de ânsia fria na boca pouca ,

na pobre boca do estômago vazia e rouca



Cinquentanos 


reencontrar um amigo é abrir  a casa para as borboletas

a sensação de seu sopro colorido e fresco dinamizando os átomos da penumbra

redimensionando paredes, rebocando ausências,

(mesmo as menos visíveis)


reencontrar um amigo é

descortinar janelas antes

insensíveis às paisagens do dia

às pertinências da noite;


desempenar portas resmungonas;

redesenhar corredores e passagens para o outro

reencontrar um amigo

é reformar a casa para o retorno de si mesmo de uma longa ausência


Pumbleo


era uma vez passarinhos que perderam a perspectiva do azul,

que desaprenderam ciscar os horizontes

era uma vez passarinhos que

trocaram as fantasias de pássaro

pela utilidade inútil do casaco antiaéreo das galinhas

(optaram pelas migalhas que sobram? ou teriam perdido seus espelhos?),


era uma vez astroaves que desistiram de buscar as minhocas do espaçotempo infinito 


hoje


hoje o poeta não veio até agora nem um telefonema

mensagem de texto farrapo de indulgência que fosse:

saísse em viagem ao cinturão de alguma galáxia dentro de si,

ensimesmadamente longínquo; ou simplesmente não estivesse nem aí pra essas coisas de poesia


mas nada

nem um não

apenas esse silêncio

apenas esse impassível silêncio, esse ilegível silêncio tenso de vulcão


tempestade 


nesses dias só-nuvem

assistimos horrorizados aos ensaios da tempestade,

nesse tempo da história  contada pelas trovoadas

 nos encolhemos

cobrimos espelhos

suplicamos aos deuses: não diga, menino! põe uma camisa! olha o respeito que Deus castiga

sejamos prudentes, diriam conciliadores, quem sabe nos levem apenas os dedos?

Enquanto já se ouvem rumores da tempestade 

Pois bem, que seja por enquanto

Enquanto entendemos nossos pesadelos, deciframos nossos medos

Enquanto que o amor pleno, a vida plena é nosso horizonte 

mas que seja até nossa humanidade se encontrar com a amanhã

por enquanto usemos esse tempo para desvelar os espelhos, para encobrir os deuses

para buscar nossas mãos

em meio à penumbra do abandono

olhos de lamparina sejam nossos guias


mas desabrochemos logo, que a manhã tem a urgência dos sóis


cidade adentro

I

Saio de casa pra não ficar da cor das paredes,

da condição inerte dos móveis

por seu lado as pernas quase surpresas vacilam, resmungam

os anos pesam tanto quanto a vontade de ver o mundo acordar


são ingratas essas pernas que parece nasceram bem antes de mim

tão antigas minhas  pernas!


 hoje, dois velhos pescadores  embriagados numa  birosca  saudosa do mar;

duas velhas tias solitárias morando juntas


II

deus não mora sob a marquise de papelão de sob a marquise

não se esconde enrolado de trapos nem na pele-armadura de suor e rejeito 

deus não se aquece na pele de papelão e plástico nem dorme em profundo sono de cachaça, pântano e concreto

deus não se esquece ao chão indigente nem cheira a merda -

deus não caga, não fede

não cheira

nem divide as pulgas, inquilinas da dupla miséria, com um vira-latas de cobertor poído


do que se cobre deus então? afinal em qual marquise mora deus?   


III 

sigo atrás do sol, inelutável condição humana

(passos lentos;  velocidades já não me apaixonam)

as  pernas das  moças têm  urgências

caminham como se o tempo fosse traí-las na próxima esquina

eu, que já extingui os relógios,

caminho!

consulto meu corpo passo a passo (joelhos, ilusões, crenças, pulso), e ele responde pouco, 

mas como incognitamente sorri!

pobre velho corpo quase esquizofrênico:

(a pele vai murchando como um casaco de loja barata a esgarçar modelo e as luzes ),

inexplicavelmente sorri 

o esqueleto já pouco confiável vai declinando de suportar  o peso do mundo

é um fardo, mas sinto já ter vindo longe demais pra abandoná-lo

os músculos, esses derreteram exaustos de tanto malhar em ferro frio, em fogo frágil

mas embora não haja mote, meu corpo sorri diante do estrago.

Sádico ou apenas amadureceu antes de mim? Saberá ele na sua forma primitiva de segredos absolutos?

Sem respostas, caminho


É primavera e percebo que só os olhos não envelheceram parece 

faróis rebeldes vão ficando menos míopes para as coisas pasteis

imagem por imagem, gesto por gesto , diante de cada paisagem passada,  intenção, delito ou glória já pouco se chocam

os olhos vão aprendendo : tudo é sabidamente transitório mesmo que circulares

Esses meus olhos 

se tornaram mais íntimos 

hoje conversam entre si, se apertam discordam e se confortam para além do óbvio ou da catarata,

(agora mal preciso abri-los para intuir o mundo)

caminho e penso:

envelhecer talvez seja ir transferindo a musculatura para a alma


IV

a matriz de são gonçalo erguida no ano de nosso senhor de 1570 e tantos índios crucificados

vai encimando a pobre cidade e alerta aos que passam em delírio distraído

que os milagres de deus necessitam de um palco à altura

e o amor  truffaut-se

esqueci meu amor naquele cinema

depois dos quatrocentos golpes

que tu me deste

no amor que era vidro

e se cortou


uma pena aquele amor tāo pluma ter voado janela afora

ter ganhado o torvelinho das ruas onde amor vira apenas pó

mudei de rua, vendi o sofá vermelho e desajeitado da sala porque  amor não se remenda

e do amor já se sabe o rito:

 um dia,

 le fin, the end,

è finito!


último desejo

* "E quello sarà il fiore dei partigiane"


caso eu morra um dia, minha bela

me enterre à sombra colorida de uma flor


quero ser devolvido à iamy

e que seja à sombra humana de uma flor

não não quero luto, minha bela

me recolha debaixo de uma rosa rubra

esplendor de veludo esculpido a espada


não quero luto

não nem perca muito tempo com cerimônias

a memória, mais que a saudade

será minha honraria


também não chore, talvez uma única lágrima breve,

me cante um samba

me cante um irônico noel,


a beleza lírica de uma ivone,

me cante a liberdade incontível dum samba incandescente do candeia

que estarei completo


que seja uma marcha , uma marcha sem farda,

daquelas marchinhas vestidas de gente

que se canta em louvor à vida


uma canção que percorra as praças anunciando

a nova ordem do dia

e qual seria senão o amor?


cantemos então uma canção breve e leve

de melodia sinuosa e certa como os horizontes

cantemos a muitas vozes então

nossa coragem diária em direção ao front


um cão sobre o ocaso do poema


sou sim aquele cão sarnento que abre sobre a calçada seu circo de pulgas horrendo

horrendo? seu circo baudellaire,

antônio fraga ao desabrigo

aquele ser de lona já desgastada aqui e ali exibe as marcas dos

acidentes de uma existência

travada entre o trampolim e a cartola de onde brotam corvos

em lugar dos pombos demitidos de suas ilusões

esse cão que escava calçada insólita como se não pudesse,

que enterra o morto como quem cavasse a própria sepultura,

levanta o mastro glorioso - feito de vértebras mais musculosas que o próprio corpo -

e ergue-se sobre tudo o pano espandongado e áspero

sacode a carcaça num gesto frenético mas bem calculado

(tudo nele é ilusionismo)

para expor ao digníssimo público

seus artista da fome: que saltem!

saltem minhas caras tomem pra si esse picadeiro vivo de passantes desatentos !

mas se não houver um aplauso

um olhar admirado

a vida não valeu a pena? Foda-se!

a vida é uma outra coisa além do espetáculo - tudo ali é ilusionismo lembram?

os cães mambembes são assim

debaixo da velha lona corroída

não se ouvem as estrelas de bilac

não há regozijo diante do inatingível

nas brechas abertas na velha cobertura, a carne vermelha

das patologias humanas

a burocracia invisível e perversa dos vermes

as pulgas ? Elas se apresentam sob apupos das ruas e o fascismo dos sapatos

tão diferentes dos burgueses carrapatos

elas não querem sugar-nos até a alma até a própria morte

vivem no seu sem-tempo aos saltos quânticos: saltem! saltem!

que a vida não é mais que um instante dentro do nada,

mas como pulsa!

sou como aquele cão de circo sobre um picadeiro de pulgas

mas apesar de tudo ou do nada respiro

a contragosto, respiro

respiro e tenho sede,

respiro e tenho fome

respiro e tenho raiva

muita raiva entredentes!


balinhas

 o papel vermelho que envolve bala rude

o papel  crocante que envolve bala rubra

o papel sedoso que envolve doce a bala sanguínea

 

mal esconde a cárie aberta no peito frio, num belo espetáculo jornalístico

bandeira de papel, comoção e ódio reverenciada  na esquina,

banhada numa poça violenta, dor eternizada pelo flash instantâneo

sussurra a voz fantasma de crianças: as balas não são feitas de infância


saber ler

 

pra quem sabe ler

um pingo jamais será só letra

talvez sol

talvez manhã de sol

talvez o sol de manhã fluorescente no céu  fictício do papel

talvez o ofício fluorescente de um sol matinal no céu  fictício do papel matinal

 

pra quem sabe ler um ponto jamais estará só

 e ponto






resmungos de sísifo


1.      carta


caro sísifo,

se escrevo curto e grosso,

é que não  sou de meias palavras

(gosto delas dilaceradas)

saiba, camarada: sofrer caiu em desuso,

e como diria um filosofista do samba:

pedra não é trabalho pra pagão

inda mais quando o fardo que se carrega

essa humana carga  é assim tão arredia

esse incômodo indômito, esse  protovômito diário

noite e dia

ah meu sísifo, carregar  pedra não é ofício digno

pra pagãos nem pra santos nem drummonds


2

 filósofo sem nenhum futuro,

sempre pensei na morte de maneira pouco profunda

e sem filosofias:

em síntese

como um mero domingo

sem teorias

nem culpa;

sem a retórica etílica dos sábados

nem o mal estar niilista de segunda


3.

 lida lida eterna vida se me chamasse raimundo pegava um pau de ara

e dava de cara adentro desse mundo mundo devastado mundo

–  vida vida eterna lida,  mais vale o bruto verso obtuso que a mera mesma rima

4

maldição, lamenta sísifo, não é o peso da pedra

a quilometricarfante subida, o despencar sem surpresas

o ofício patético de besta

 – a  pena, lamenta,  é no fundo dar de cara comigo mesmo,

apesar de tudo, inexoravelmente o mesmo


amar, verbo intransmissível

dizer que  te amo?

te pergunto como

como amar alguém

se amar não se empresta?

quem ama se encontra na mais profunda solidão

a solidão de uma rua sem um cão

a solidão de um cão sem seu dono

como?

se amar requer essas coisas

repousadas na cristaleira

coração de louça herdada de família

um bilhete amarelado na memória profunda de alguma

velha gaveta

de uma fotografia acinzentada e quase sem rostos...

aquele silêncio prolixo

entre talheres...

dizer que te amo?

te pergunto quando

se o amar é coisa

feita de pedaços de outras coisas sem carne nem ossos:

o brinde nas núpcias

a mão pequena sobre o ombro capitulado de tão antigo

a voz quase imperceptível do filho

que não se corresponde nem liga

envelhecermos juntos sobre a  cadeira instável

e o balançar do tempo no relógio preso à parede

(únicos seres vivos da casa)?

o almoço de domingos domesticamente iguais

enrijecermos juntos!

me amas? interrogas!

pergunto eu como ?

se amar  é querer decifrar o outro.

E como posso, se mesmo quem ama se desconhece?


cardiofilia


O coração da gente não para

essa dor no coração da gente

não para o coração da gente

esse músculo por fora

por dentro,  continente

essa alma fora da gente

imensidão de sombra

e sobras sob sol inclemente

fazer o quê, então?

se involuntário

pulsa esse crepúsculo,

falso músculo,

que não para de bater

todo tempo dentro da gente


a pulsar pra trás e pra sempre?


não, nunca

nunca duvidar de uma palavra

nessa miríade multiclara 

tudo não passa da mais enganosa verdade


não nunca desprezar as palavras

mesmo aquelas que orbitam agora em torno do nada

guardo na geladeira e as conservo

logo elas saberão a hora de se encontrar, de trocar seu beijo 

de se enlaçar ambiguamente

logo soarão entre si seus sinos, recriarão sentidos:

palavras quando se tocam adquirem a mania de reescrever dicionários


solilóquio

queres saber enfadonho do que tanto falo:

falo dessa solidão onde você se meteu de quando se separou do coração

-  Walking dead, walking to infinity place always and always until the complete dead 

que é  a única  verdade no jogo de amarelinhas da existência

o quarto na torre a roupa de grife  seu carro com pernas de raio e em cada porta um faminto mastiff

de tudo que importa, e concretamente não existe

Falo do amor que ficou verde e você acumula num cofre dentro das próprias paredes da pele

Falo dele, esse corpo desfeito do outro mesmo antes do cigarro, bem antes do velho beijo

falo desse ensolarado brejo onde ti encontras atulhado si até o pescoço

Falo da gargalhada que viralisa em redes quase feliz como quem nunca levou porrada

dessa palavra que necessita falar sempre de língua grande e ouvido moco

Desse ouvido tão alérgico ao outro que vomita a contradita de hiller, os silêncios da música de hiller

a desmúsica de hiller!

Falo da vida sem sombra, da noite sem dia dos dias sem pontes  arrotando horizontes de purpurina

mas do que tanto falo?

falo de mim,

falo de ti, sonâmbulos infiéis da madrugada

interrogo onde nós que já não ouvimos estrelas

nós que derrubamos estrelas

nós que viramos estrelas queimando orgulhosas num céu de papel infame

nosso céu particular de celofane






olhar pra trás

o breve ato de olhar pra trás

pode revelar em si o aprendizado

de uma enciclopédia particular:


a surpresa incômoda

de um arrepio frio

na nuca desatenta,


de um abraço morno

da mãe, do irmão

do tio que já foram


mas sobre tudo,

olhar pra trás

pode trazer a luminosa

redescoberta de um sol

caído inadvertidamente do bolso;


ou mesmo aquele torcicolo

ainda por ser curado

em nome da redenção do pescoço