Este pretende ser um espaço de divulgação de coisas que venho produzindo ao longo dos anos. Sem pressa. Afinal, "de preguiça em preguiça, também se enche boa linguiça".
domingo, 24 de dezembro de 2023
Natal-23
quinta-feira, 23 de novembro de 2023
sentado ao lado de Tolstói sem Quintana
segunda-feira, 9 de outubro de 2023
dolores
sexta-feira, 2 de junho de 2023
CHORAR
CHORAR
Tenho saudades, saudades de ti, companheira nua,
saudades da infância,
daquela viagem a Itaocara de onde o coração nunca mais voltou,
saudades de um café diante da manhã modorrenta e friap, erdida no tempo
do café plantado e colhido pelas mãos ásperas da minha avó, pelas mãos fortes e ternas da minha mãe
lembra daquelas viagens ao cinturão de Órion no tempo em que a gravidade detinha leis que ainda nos permitiam alguma ilusão?
chorar é catarse às avessas porque me recarrega de mim mesmo
choro por ser um homem velho diante
de um mundo incoerentemente jovem
porque sou um homem frágil entre fantasmas gigantescos
choro quando ao som de debussy
encontro guinga também chorando por caminhos lindamente tortuosos
choro por humano que sou
e chorar é uma forma de redenção humana:
chorar pela filha que casa
pela neta que nasce
pela saudade amargada na distância
chorar, com atraso de anos, aquele tio desaparecido,
chorar pelo amor acabado,
pelo amor que cruza comigo numa esquina dessa idade e ligeira
o choro do primeiro dia de escola suavizado pela imagem da professora mais linda de todas porque era só sua
o choro da primeira menarca da filha quando o jardim cresce à volta e tudo vai virando floresta repleta de luz e lobos
chorar diante da humilhação diária, nossa humilhação diária
sob a pele negra, sob a pele femininas, sob a pele operária
chorar porque faz sentir em mim a sua dor, porque te tomo como minha, companheira nua
enfim chorar porque o choro
tem a potência de me fazer de ti
em mim mesmo
sábado, 27 de maio de 2023
Soyinka
quinta-feira, 25 de maio de 2023
inutil
sexta-feira, 19 de maio de 2023
a reyes
conheço bem efraim reyes já ouvi de seus segredos
mais espinhosos , de seu gozo mais indulgente
conheço reyes porque aprendi o segredo milimétrico dos espelhos:
o reflexo pode ser exatamente aquilo que não se vislumbra
sua alma como a minha é feita de corcéis negros
com elas cavalgamos lado a lado
pelas veredas abertas entre o mar e as cordilheiras
sobre eles cruzamos altiplanos e pradarias até os misteriosos manguezais
onde moram sob a lama as sementes
das palavras
junto com os caranguejos
e os cadáveres de nossa juventude
reyes também me conhece
lado a lado cortejamos o sexo buliçoso das prostitutas
à beira do cais de angra
dormimos sob o mesmo teto dos andarilhos e indulgentes das ruas de santiago
cerramos fileiras com aqueles que cantam com sotaque da américa latina
por isso digo: conheço bem efraim reys e ele a mim, sem nunca termos trocado sequer um casual bom dia
quinta-feira, 18 de maio de 2023
recuerdos del mañana
recordações do amanhã
segunda-feira, 8 de maio de 2023
outra infância
outra infância
minha mãe passou a acordar as galinhas,
calçava os pés de nuvens para não acordar as crianças pretinhas antes que a realidade as despertasse para a escuridão dos dias
fazia o café vindo de longe, com certeza plantado por mãos fortes e madrugadeiras como as suas,
(minha mãe, tão negra e tão mulher, que depois voltaria pra casa distante e sem reboco pra cuidar dos filhos, do cachorro
e das galinhas que, a essa altura, já dormiam)
e lá ia ela madrugada a dentro matar seus muitos leões diários:
naquele tempo não havia os dragões imaginários de hoje,
somente minha mãe, os leões e umas poucas, magras galinhas
e toda uma pobre infância.
terça-feira, 25 de abril de 2023
Os dias fora do relógio
sábado, 22 de abril de 2023
in universos&diversos
sexta-feira, 7 de abril de 2023
sexta-feira, 31 de março de 2023
Teatro
Jornaleiro
Poemas de 2011 a 2021
infância
minha mãe cantando pro radio
eu sentado no fresco do vermelhão na cozinha sonhava coisas do mundo traçando mapas imaginários no chão
meu pai ia longe correr campinas de concreto
abater gigantes de metal e vidro
sem pajem ou musa
todos os dias que rádio dizia bom dia, boa tarde
boa noite
de dentro, mãe cantava feito a dalva
uma homilia pra emilinha:
sê forte, sê mulher pra suportar esse mundo de barba e músculo bruto
enquanto eu adormecia deitado numa nuvem branca lavada a mão
corada na luz solar de minha mãe
Pós-haicais
I
passo a passo o pássaro
passa de nuvens despido
aquele ex- pássaro abatido
II
romanos em si declinavam
portugueses quase concordam ainda
bardo mouro eu mordo a língua
Dos suicídios
I
vezes fico assim: só comigo, eu mesmo só em mim
vezes me recolho enfim: embrião, sertão, amendoim
Mas súbito o inviável não sugere um possível sim
entre um e outro viro ventre:
embrião, amendoim
II
desafio diário: a palavra, meu caro, está
sempre por um fio pouco claro
esse frágil frio cínico fio na sua natureza oblíqua:
ora crítica :bisturi; ora perdulária: navalha
VII
ai esse peito que rasga
essa pele que solta
lágrima lava queima
coração desiste e salta
e tudo é tão intensamente insustentável
que não se sustenta
e eu como era
desmancho
e no terceiro dia rebroto:
ai esse peito queima
esse coração que salta em si
essa pele que deseja
aí essa lágrima que ri!
VIII
saio de mim pra me internar nalgum cômodo:
a casa enorme não dorme, não ruge nem range
mas insiste sádica em convencer as janelas que depois delas não haverá qualquer paisagem
IX
vezes fico assim:
só comigo
eu mesmo só em mim
vezes me recolho enfim
embrião
sertão
mas súbito o inviável não vem sugerir o possível sim,
entre um e outro
viro ventre:
embrião, amendoim
X
- que que há basquiat?
- é essa droga diária que deforma espanto e abraço,
que arranca milhões de olhos da luz e
condena as cores ao mais pálido embaraço
- então que que dá basquiat?
- redesenhar o espírito mais remoto do traço
compartilhar nessa tela
o esqueleto vigoroso
e perplexo do escárnio
XI.
naquela madrugada
depois daquele bar
solitário mesmo de mim
me sentia tão perto de um inseto
que até pensei pular fora
do meu exoesqueleto
- depois daquele bar, depois do ébrio gesto de amar -
mas naquele tempo isso andava tão demodê
que preferi então
entrar
sentar
escrever
mas como pode a palavra mesma suicidar um suicida?
palavra não pede nem convida
seduz enreda condena, sufocando até a vida,
feito imponderável anti-inseticida
Universos&Diversos
I
a tarde ia se banhando de um profudinfitamente breve magenta
por mim ali mesmo parava pra todo o sempre minha agenda.
II
O amor líquido de dois batráquios residiria no ínfimo paço entre sobressalto e tédio, beijo e brejo?
III
vezes me sinto tão só e a solidão é tamanha
que nem essa mesma solidão me acompanha
VI
direito ao contraditório: ohlepse orem azerutan rop ajes euq oliuqa odut oiròtpmereq ogen
pãoetcia
I
onde há fome de pão não haverá poesia
onde há fome de pão jamais brotará poesia
onde há sede do pão
não haverá fome de poesia?
não, meu caro, minha cara
onde não houver pão
poesia se criará lâmina, bala
revolta e fúria
essência mesma de toda sua arte
O livro dos acontecimentos
bilhete a vânia (bambirra)
sei que um dia (e sim virá esse dia em que não se precise disputar papel com a ventania)
poderemos passear por essa orla sob os trópicos sem a sensação de ânsia fria na boca pouca ,
na pobre boca do estômago vazia e rouca
Cinquentanos
reencontrar um amigo é abrir a casa para as borboletas
a sensação de seu sopro colorido e fresco dinamizando os átomos da penumbra
redimensionando paredes, rebocando ausências,
(mesmo as menos visíveis)
reencontrar um amigo é
descortinar janelas antes
insensíveis às paisagens do dia
às pertinências da noite;
desempenar portas resmungonas;
redesenhar corredores e passagens para o outro
reencontrar um amigo
é reformar a casa para o retorno de si mesmo de uma longa ausência
Pumbleo
era uma vez passarinhos que perderam a perspectiva do azul,
que desaprenderam ciscar os horizontes
era uma vez passarinhos que
trocaram as fantasias de pássaro
pela utilidade inútil do casaco antiaéreo das galinhas
(optaram pelas migalhas que sobram? ou teriam perdido seus espelhos?),
era uma vez astroaves que desistiram de buscar as minhocas do espaçotempo infinito
hoje
hoje o poeta não veio até agora nem um telefonema
mensagem de texto farrapo de indulgência que fosse:
saísse em viagem ao cinturão de alguma galáxia dentro de si,
ensimesmadamente longínquo; ou simplesmente não estivesse nem aí pra essas coisas de poesia
mas nada
nem um não
apenas esse silêncio
apenas esse impassível silêncio, esse ilegível silêncio tenso de vulcão
tempestade
nesses dias só-nuvem
assistimos horrorizados aos ensaios da tempestade,
nesse tempo da história contada pelas trovoadas
nos encolhemos
cobrimos espelhos
suplicamos aos deuses: não diga, menino! põe uma camisa! olha o respeito que Deus castiga
sejamos prudentes, diriam conciliadores, quem sabe nos levem apenas os dedos?
Enquanto já se ouvem rumores da tempestade
Pois bem, que seja por enquanto
Enquanto entendemos nossos pesadelos, deciframos nossos medos
Enquanto que o amor pleno, a vida plena é nosso horizonte
mas que seja até nossa humanidade se encontrar com a amanhã
por enquanto usemos esse tempo para desvelar os espelhos, para encobrir os deuses
para buscar nossas mãos
em meio à penumbra do abandono
olhos de lamparina sejam nossos guias
mas desabrochemos logo, que a manhã tem a urgência dos sóis
cidade adentro
I
Saio de casa pra não ficar da cor das paredes,
da condição inerte dos móveis
por seu lado as pernas quase surpresas vacilam, resmungam
os anos pesam tanto quanto a vontade de ver o mundo acordar
são ingratas essas pernas que parece nasceram bem antes de mim
tão antigas minhas pernas!
hoje, dois velhos pescadores embriagados numa birosca saudosa do mar;
duas velhas tias solitárias morando juntas
II
deus não mora sob a marquise de papelão de sob a marquise
não se esconde enrolado de trapos nem na pele-armadura de suor e rejeito
deus não se aquece na pele de papelão e plástico nem dorme em profundo sono de cachaça, pântano e concreto
deus não se esquece ao chão indigente nem cheira a merda -
deus não caga, não fede
não cheira
nem divide as pulgas, inquilinas da dupla miséria, com um vira-latas de cobertor poído
do que se cobre deus então? afinal em qual marquise mora deus?
III
sigo atrás do sol, inelutável condição humana
(passos lentos; velocidades já não me apaixonam)
as pernas das moças têm urgências
caminham como se o tempo fosse traí-las na próxima esquina
eu, que já extingui os relógios,
caminho!
consulto meu corpo passo a passo (joelhos, ilusões, crenças, pulso), e ele responde pouco,
mas como incognitamente sorri!
pobre velho corpo quase esquizofrênico:
(a pele vai murchando como um casaco de loja barata a esgarçar modelo e as luzes ),
inexplicavelmente sorri
o esqueleto já pouco confiável vai declinando de suportar o peso do mundo
é um fardo, mas sinto já ter vindo longe demais pra abandoná-lo
os músculos, esses derreteram exaustos de tanto malhar em ferro frio, em fogo frágil
mas embora não haja mote, meu corpo sorri diante do estrago.
Sádico ou apenas amadureceu antes de mim? Saberá ele na sua forma primitiva de segredos absolutos?
Sem respostas, caminho
É primavera e percebo que só os olhos não envelheceram parece
faróis rebeldes vão ficando menos míopes para as coisas pasteis
imagem por imagem, gesto por gesto , diante de cada paisagem passada, intenção, delito ou glória já pouco se chocam
os olhos vão aprendendo : tudo é sabidamente transitório mesmo que circulares
Esses meus olhos
se tornaram mais íntimos
hoje conversam entre si, se apertam discordam e se confortam para além do óbvio ou da catarata,
(agora mal preciso abri-los para intuir o mundo)
caminho e penso:
envelhecer talvez seja ir transferindo a musculatura para a alma
IV
a matriz de são gonçalo erguida no ano de nosso senhor de 1570 e tantos índios crucificados
vai encimando a pobre cidade e alerta aos que passam em delírio distraído
que os milagres de deus necessitam de um palco à altura
e o amor truffaut-se
esqueci meu amor naquele cinema
depois dos quatrocentos golpes
que tu me deste
no amor que era vidro
e se cortou
uma pena aquele amor tāo pluma ter voado janela afora
ter ganhado o torvelinho das ruas onde amor vira apenas pó
mudei de rua, vendi o sofá vermelho e desajeitado da sala porque amor não se remenda
e do amor já se sabe o rito:
um dia,
le fin, the end,
è finito!
último desejo
* "E quello sarà il fiore dei partigiane"
caso eu morra um dia, minha bela
me enterre à sombra colorida de uma flor
quero ser devolvido à iamy
e que seja à sombra humana de uma flor
não não quero luto, minha bela
me recolha debaixo de uma rosa rubra
esplendor de veludo esculpido a espada
não quero luto
não nem perca muito tempo com cerimônias
a memória, mais que a saudade
será minha honraria
também não chore, talvez uma única lágrima breve,
me cante um samba
me cante um irônico noel,
a beleza lírica de uma ivone,
me cante a liberdade incontível dum samba incandescente do candeia
que estarei completo
que seja uma marcha , uma marcha sem farda,
daquelas marchinhas vestidas de gente
que se canta em louvor à vida
uma canção que percorra as praças anunciando
a nova ordem do dia
e qual seria senão o amor?
cantemos então uma canção breve e leve
de melodia sinuosa e certa como os horizontes
cantemos a muitas vozes então
nossa coragem diária em direção ao front
um cão sobre o ocaso do poema
sou sim aquele cão sarnento que abre sobre a calçada seu circo de pulgas horrendo
horrendo? seu circo baudellaire,
antônio fraga ao desabrigo
aquele ser de lona já desgastada aqui e ali exibe as marcas dos
acidentes de uma existência
travada entre o trampolim e a cartola de onde brotam corvos
em lugar dos pombos demitidos de suas ilusões
esse cão que escava calçada insólita como se não pudesse,
que enterra o morto como quem cavasse a própria sepultura,
levanta o mastro glorioso - feito de vértebras mais musculosas que o próprio corpo -
e ergue-se sobre tudo o pano espandongado e áspero
sacode a carcaça num gesto frenético mas bem calculado
(tudo nele é ilusionismo)
para expor ao digníssimo público
seus artista da fome: que saltem!
saltem minhas caras tomem pra si esse picadeiro vivo de passantes desatentos !
mas se não houver um aplauso
um olhar admirado
a vida não valeu a pena? Foda-se!
a vida é uma outra coisa além do espetáculo - tudo ali é ilusionismo lembram?
os cães mambembes são assim
debaixo da velha lona corroída
não se ouvem as estrelas de bilac
não há regozijo diante do inatingível
nas brechas abertas na velha cobertura, a carne vermelha
das patologias humanas
a burocracia invisível e perversa dos vermes
as pulgas ? Elas se apresentam sob apupos das ruas e o fascismo dos sapatos
tão diferentes dos burgueses carrapatos
elas não querem sugar-nos até a alma até a própria morte
vivem no seu sem-tempo aos saltos quânticos: saltem! saltem!
que a vida não é mais que um instante dentro do nada,
mas como pulsa!
sou como aquele cão de circo sobre um picadeiro de pulgas
mas apesar de tudo ou do nada respiro
a contragosto, respiro
respiro e tenho sede,
respiro e tenho fome
respiro e tenho raiva
muita raiva entredentes!
balinhas
o papel vermelho que envolve bala rude
o papel crocante que envolve bala rubra
o papel sedoso que envolve doce a bala sanguínea
mal esconde a cárie aberta no peito frio, num belo espetáculo jornalístico
bandeira de papel, comoção e ódio reverenciada na esquina,
banhada numa poça violenta, dor eternizada pelo flash instantâneo
sussurra a voz fantasma de crianças: as balas não são feitas de infância
saber ler
pra quem sabe ler
um pingo jamais será só letra
talvez sol
talvez manhã de sol
talvez o sol de manhã fluorescente no céu fictício do papel
talvez o ofício fluorescente de um sol matinal no céu fictício do papel matinal
pra quem sabe ler um ponto jamais estará só
e ponto
resmungos de sísifo
1. carta
caro sísifo,
se escrevo curto e grosso,
é que não sou de meias palavras
(gosto delas dilaceradas)
saiba, camarada: sofrer caiu em desuso,
e como diria um filosofista do samba:
pedra não é trabalho pra pagão
inda mais quando o fardo que se carrega
essa humana carga é assim tão arredia
esse incômodo indômito, esse protovômito diário
noite e dia
ah meu sísifo, carregar pedra não é ofício digno
pra pagãos nem pra santos nem drummonds
2
filósofo sem nenhum futuro,
sempre pensei na morte de maneira pouco profunda
e sem filosofias:
em síntese
como um mero domingo
sem teorias
nem culpa;
sem a retórica etílica dos sábados
nem o mal estar niilista de segunda
3.
lida lida eterna vida se me chamasse raimundo pegava um pau de ara
e dava de cara adentro desse mundo mundo devastado mundo
– vida vida eterna lida, mais vale o bruto verso obtuso que a mera mesma rima
4
maldição, lamenta sísifo, não é o peso da pedra
a quilometricarfante subida, o despencar sem surpresas
o ofício patético de besta
– a pena, lamenta, é no fundo dar de cara comigo mesmo,
apesar de tudo, inexoravelmente o mesmo
amar, verbo intransmissível
dizer que te amo?
te pergunto como
como amar alguém
se amar não se empresta?
quem ama se encontra na mais profunda solidão
a solidão de uma rua sem um cão
a solidão de um cão sem seu dono
como?
se amar requer essas coisas
repousadas na cristaleira
coração de louça herdada de família
um bilhete amarelado na memória profunda de alguma
velha gaveta
de uma fotografia acinzentada e quase sem rostos...
aquele silêncio prolixo
entre talheres...
dizer que te amo?
te pergunto quando
se o amar é coisa
feita de pedaços de outras coisas sem carne nem ossos:
o brinde nas núpcias
a mão pequena sobre o ombro capitulado de tão antigo
a voz quase imperceptível do filho
que não se corresponde nem liga
envelhecermos juntos sobre a cadeira instável
e o balançar do tempo no relógio preso à parede
(únicos seres vivos da casa)?
o almoço de domingos domesticamente iguais
enrijecermos juntos!
me amas? interrogas!
pergunto eu como ?
se amar é querer decifrar o outro.
E como posso, se mesmo quem ama se desconhece?
cardiofilia
O coração da gente não para
essa dor no coração da gente
não para o coração da gente
esse músculo por fora
por dentro, continente
essa alma fora da gente
imensidão de sombra
e sobras sob sol inclemente
fazer o quê, então?
se involuntário
pulsa esse crepúsculo,
falso músculo,
que não para de bater
todo tempo dentro da gente
a pulsar pra trás e pra sempre?
não, nunca
nunca duvidar de uma palavra
nessa miríade multiclara
tudo não passa da mais enganosa verdade
não nunca desprezar as palavras
mesmo aquelas que orbitam agora em torno do nada
guardo na geladeira e as conservo
logo elas saberão a hora de se encontrar, de trocar seu beijo
de se enlaçar ambiguamente
logo soarão entre si seus sinos, recriarão sentidos:
palavras quando se tocam adquirem a mania de reescrever dicionários
solilóquio
queres saber enfadonho do que tanto falo:
falo dessa solidão onde você se meteu de quando se separou do coração
- Walking dead, walking to infinity place always and always until the complete dead
que é a única verdade no jogo de amarelinhas da existência
o quarto na torre a roupa de grife seu carro com pernas de raio e em cada porta um faminto mastiff
de tudo que importa, e concretamente não existe
Falo do amor que ficou verde e você acumula num cofre dentro das próprias paredes da pele
Falo dele, esse corpo desfeito do outro mesmo antes do cigarro, bem antes do velho beijo
falo desse ensolarado brejo onde ti encontras atulhado si até o pescoço
Falo da gargalhada que viralisa em redes quase feliz como quem nunca levou porrada
dessa palavra que necessita falar sempre de língua grande e ouvido moco
Desse ouvido tão alérgico ao outro que vomita a contradita de hiller, os silêncios da música de hiller
a desmúsica de hiller!
Falo da vida sem sombra, da noite sem dia dos dias sem pontes arrotando horizontes de purpurina
mas do que tanto falo?
falo de mim,
falo de ti, sonâmbulos infiéis da madrugada
interrogo onde nós que já não ouvimos estrelas
nós que derrubamos estrelas
nós que viramos estrelas queimando orgulhosas num céu de papel infame
nosso céu particular de celofane
olhar pra trás